Crise de abastecimento do Atazanavir: A falta de transparência, os prejuízos do monopólio e a necessidade de Licença Compulsória Desabastecimento do Atazanavir Desde o início de fevereiro, pessoas vivendo com HIV estão sendo afetados pela falta do medicamento antiretroviral Atazanavir (ATV). Casos de desabastecimento foram relatados em cidades como Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, e São José do Rio Preto, em São Paulo. Em outros locais do país, a baixa no estoque do medicamento também foi denunciada por pacientes, que passaram a recebê-lo de forma fracionada ou orientados a substitui-lo por outros antirretrovirais. Esses procedimentos foram recomendados pelo próprio Ministério da Saúde, que reconheceu o problema no abastecimento. De acordo com o Jornal O Estado de São Paulo , o Ministro da Saúde, Alexandre Padilha, teria afirmado que houve um atraso na entrega do medicamento, que deveria ter ocorrido em janeiro. De acordo com o mesmo jornal, o diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Dirceu Greco, disse que não há justificativa única para o desabastecimento do Atazanavir. “Foi uma junção de atrasos, problemas que foram se somando" . Conforme as Recomendações para Terapia Antiretroviral em Adultos Infectados pelo HIV 2008, o Atazanavir é indicado no Brasil para tratamento antiretroviral inicial ou como opção em esquemas de resgate e estima-se que seja usado por cerca de 33 mil pessoas no país . A substituição de um medicamento muitas vezes pode significar uma redução das possibilidades de tratamentos pelo risco de mutação do vírus, além de um aumento de risco de abandono do tratamento pelo paciente . A falta de um medicamento com essa importância é muito grave, de modo que não basta um mero reconhecimento do problema por parte das autoridades sem que haja transparência em relação às causas deste problema. Falta de transparência Em nota técnica divulgada no dia 14/03 pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, foram feitas as recomendações de fracionamento e substituição do medicamento, entretanto, não houve uma preocupação em tornar claros os motivos que geraram a falha no estoque. Deste modo, pacientes, organizações e a sociedade como um todo são privadas de informações fundamentais a respeito da política de aquisição do Atazanavir praticada pelo governo brasileiro. Diante desta falta de transparência, que dificulta o envolvimento da sociedade civil, desenha-se um cenário de incerteza em relação ao acesso aos antirretrovirais, pois o temor de novos desabastecimentos é proporcional à falta de informação que se verifica quando eles acontecem. Em relatório das Nações Unidas lançado este mês com colaborações da Organização Mundial de Saúde (OMS), da UNAIDS, e do Programa de Desenvolvimento da ONU, destaca-se que a sociedade civil tem desempenhado um papel essencial na sensibilização pública de questões que afetam o acesso a medicamentos para HIV/AIDS. É sob essa perspectiva da importância da participação da sociedade civil que criticamos a falta de transparência do governo a respeito do desabastecimento do Atazanavir. Prejuízos do Monopólio No Brasil, o Atazanavir é comercializado em situação de monopólio pela Bristol-Meyers Squibb (BMS), em razão da existência de uma patente concedida com validade até abril de 2017 . Dados de 2009 do Ministério da Saúde mostram que as compras do Atazanavir naquele ano representaram 14,5% dos gastos do programa para aquisição de medicamentos para AIDS, totalizando cerca de 92 milhões de reais. Informações de 2010 do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais revelam que o Brasil paga mais de 1,4 mil dólares por paciente/ano pela compra do Atazanavir . Os custos elevados trazem preocupações a respeito da sustentabilidade do programa nacional de combate à AIDS. Mas esse não é o único impacto negativo do monopólio. Além de impactar o orçamento com preços abusivos possibilitados pela falta de concorrência, depender de um único fornecedor pode também comprometer o abastecimento. Em fevereiro de 2007, por exemplo, o Programa Nacional de DST/AIDS divulgou nota técnica orientando uma interrupção de prescrição e substituição do medicamento Abacavir devido a problemas no contrato com o fabricante que geraram atraso na entrega. No mesmo ano, o governo suspendeu a distribuição do medicamento Nelfinavir e recomendou sua substituição após o recolhimento do medicamento comunicado pela empresa Roche. Em ambos os casos, os medicamentos estavam disponíveis no mercado internacional, inclusive com mais de uma opção de fabricante de versões genéricas . Devido ao monopólio, o país ficou impossibilitado de importar essas versões. Consideramos, portanto, que o monopólio deve ser questionado quando gera problemas de acesso, seja tornando onerosos os programas de tratamento, seja afetando o abastecimento. Em 2010, houve desabastecimento de quatro medicamentos para AIDS - abacavir, lamivudina, nevirapina e a associação entre lamivudina e zidovudina. Segundo matéria do Jornal O Estado de São Paulo , estima-se que 176,1 mil pacientes tenham sido afetados pelo desabastecimento. Para as pessoas vivendo com HIV/AIDS, a falta de qualquer um dos medicamentos representa um grande prejuízo e a falta de explicações um grande desrespeito, mas a falta de soluções é o mais preocupante. Licença compulsória para o Atazanavir Uma possível solução para esse problema é a emissão de uma Licença Compulsória, medida prevista pela lei brasileira de patentes e também pelos acordos internacionais sobre o tema. O segundo parágrafo do artigo 68 da Lei 9.279/96 estabelece que a Licença Compulsória pode ser emitida quando a comercialização do produto não satisfizer às necessidades do mercado. Nesse caso, a importação de outras versões do medicamento, possibilitada pela Licença Compulsória, pode servir para sanar problemas de abastecimento como o que agora afeta os pacientes que fazem uso do Atazanavir. A existência de uma versão genérica do Atazanavir produzida pelo laboratório indiano Matrix, que foi pré-qualificada pela OMS no dia 25 de outubro de 2010 , torna viável a adoção dessa medida em curto prazo, até que seja possível a produção local do medicamento. A versão genérica é comercializada a preço muito inferior ao praticado pela empresa detentora da patente no Brasil – BMS. Segundo dados da organização internacional Médicos Sem Fronteiras, o preço do tratamento com a versão genérica do Atazanavir seria de 256 dólares por paciente ano , menos de um quinto do preço atualmente pago pelo Brasil. Se for de fato do interesse do governo brasileiro adotar medidas para acabar com os problemas de abastecimento de medicamentos para AIDS, uma Licença Compulsória para o Atazanavir deve ser considerada. Além de não deixar o país refém de uma única empresa, essa medida reduziria significativamente os custos do programa nacional de combate AIDS. De acordo com o relatório recente da ONU , preços baixos são fundamentais para que governos cumpram seus comprometimentos de manter os pacientes em uma terapia antirretroviral durante toda a vida e garantem a sustentabilidade de programas de tratamento, na medida em que o número de pessoas que precisam de tratamento aumenta. De acordo com dados do boletim epidemiológico do Ministério da Saúde (MS) lançado em dezembro de 2010, em 2009 foram registrados 38.538 novos casos de infecção por HIV, superando a média de anos anteriores que girava em torno de 33 mil a 35 mil novos casos. Além disso, o Ministro da Saúde, Alexandre Padilha, disse em janeiro deste ano que o diagnóstico precoce será o foco da ação do Ministério da Saúde no combate à AIDS . Assim sendo, é de extrema importância que o governo brasileiro tome medidas concretas para evitar novos desabastecimentos desse medicamento. Consideramos que a emissão de uma Licença Compulsória para o Atazanavir seria uma demonstração clara de comprometimento e respeito para com aqueles que necessitam de tratamento antirretroviral e por isso pedimos para que essa proposta seja analisada com urgência pelo Ministério da Saúde. Consideramos ainda que a emissão de uma licença deve ser acompanhada de transparência por parte dos laboratórios públicos e privados envolvidos e principalmente pelo Ministério da Saúde. Nós, organizações da sociedade civil, profissionais de saúde, acadêmicos e pessoas vivendo com HIV/AIDS exigimos o fim dos desabastecimentos de antiretrovirais, participação nas decisões políticas relacionadas a acesso a tratamentos e também o fim do monopólio de bens essenciais. As práticas e lógicas do mercado não podem orientar de forma exclusiva as decisões de saúde. Exigimos que as pessoas sejam colocadas em primeiro lugar.
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